domingo, julho 09, 2006

O Canto da Noite

Friedrich W. Nietszche

"É noite; agora eleva−se mais a voz das
fontes. E a minha alma é também uma
fonte.

É noite; agora despertam todos os
cantos dos amantes. E a minha alma é
também um canto de amante.

Há qualquer coisa em mim não aplicada
nem aplicável, que quer elevar a voz.
Há em mim um anelo de amor que fala
a linguagem do amor.

Eu sou luz. Ah! se fosse noite! Mas é
esta a minha soledade: ver−me rodeado
de luz.

Ah! se eu fosse sombrio e noturno!
Como sorveria os seios da luz! E
também vos bendiria a vós, estrelinhas
que brilhais lá em cima como pirilampos!
E seria venturoso com vossos mimos de
luz.

Eu, porém, vivo da minha própria luz,
absorvo em mim mesmo as chamas que
de mim brotam.

Eu não conheço o prazer de receber, e
freqüentemente tenho sonhado que
roubar deve ser ainda maior deleite do
que receber.

A minha pobreza reside em que a minha
mão nunca se cansa de dar, a minha
inveja são os olhos que vejo esperando,
e as noites vazias do desejo.

Ó, miséria de todos os que dão! Ó,
eclipse do meu sol! Ó, desejo de
desejar! Ó, fome devoradora na fartura!
Eles recebem de mim; mas, acaso lhes
tocarei eu sequer a alma? Entre dar e
receber há um abismo; e é muito difícil
transpor o menor abismo.

Nasceu um homem da minha beleza:
quereria prejudicar os que ilumino;
quereria saquear os que cumulo de
presentes: assim tenho ânsia de
maldade.

Retirando a mão, quando a mão já se
estende; vacilando como a cascata que
vacila até na sua queda; assim eu tenho
sede de maldade. Tais vinganças
medita a minha exuberância; tais
malícias nascem da minha solidão.

O meu prazer de dar morreu à força de
dar; a minha virtude cansou−se de si
mesma por sua própria exuberância.
O que dá sempre corre perigo de perder
o pudor; aquele que reparte sempre, à
força de repartir acaba por se lhe
calejarem as mãos e o coração.

Os meus olhos já se não arrasam de
lágrimas ao ver a vergonha dos que
imploram; a minha mão endureceu
demais para experimentar o tremor das
mãos cheias.

Para aonde foram as lágrimas dos meus
olhos e a plumagem do meu coração?
Ó, soledade de todos que dão! Ó,
silêncio dos que brilham! Muitos sóis
gravitam no espaço vazio; a sua luz fala
a tudo que é obscuro; só para mim
emudeceu.

Ó! É a inimizade da luz contra o
luminoso! Desapiedada, segue o seu
caminho. Profundamente injusto contra
o luminoso, frio para com os sóis, assim
caminha todo o sol. Como uma
tempestade voam os sóis por suas
órbitas: é esse o seu caminho. Seguem
a sua vontade inexorável: é essa a sua
frialdade.

Ai, só vós obscuros e noturnos, que
tirais o vosso calor do luminoso, só vós
bebeis o leite balsâmico dos úberes da
luz!

Ai, há gelo em torno de mim, gelo que
queima as minhas mãos! Tenho uma
sede que suspira por vossa sede!
É noite. Ai! Por que hei de eu ser a luz?
E sede do noturno! E soledade!

É noite... como uma fonte, brota o meu
anelo − meu anelo de fulgor.
É noite: agora eleva−se mais a voz das
fontes; e a minha alma é também uma
fonte.

É noite: agora despertam todos os
cantos dos namorados. E a minha alma
é também um canto de namorado".

Assim falou Zaratustra.

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Fonte: Nietszche, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Ed. Rideel, São Paulo, 2005.

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